Feito a partir do tabaco e de outras ervas, o rapé é mais uma herança indígena com poderes medicinais para o corpo e a mente. Aqui, a gente explica mais sobre a substância!
Para muita gente, já não é nenhuma novidade que o tabaco é considerado uma planta sagrada para diversas etnias indígenas das Américas. Por aqui, seu uso é secular, mas não apenas em sua forma fumada — diversas misturas, unguentos e outros tipos de medicinas podem ser fabricados com suas folhas, para purificar e elevar o espírito. O rapé é um desses remédios, que já se popularizou, caiu em desuso e está sendo resgatado, principalmente pelas ondas do neoxamanismo.
No artigo “Rapé e xamanismo entre grupos indígenas no médio Purus, Amazônia”, Gilton Mendes dos Santos e Guilherme Henrique Soares trazem uma revisão detalhada e bastante interessante sobre o uso da substância e seus poderes espirituais para alguns povos originários brasileiros. De acordo com seus estudos, o rapé assume o papel de transporte que leva consciências a outras dimensões, e as coloca em contato com espíritos, animais, plantas e outros seres e entidades da floresta.
Incrível, né?
Aqui, além de trazer alguns pontos dessa pesquisa cheia de informações ricas, vamos falar um pouco sobre como o rapé é utilizado atualmente, quais seus principais tipos e para que ele serve — seja no contexto religioso ou adulto.
Vem com a gente!
De onde vem o rapé?
Assim como a coca, a chacrona e o mariri, o tabaco é uma planta utilizada pelos indígenas da América há séculos — como já contamos, o tabaco já crescia em nossas terras desde aproximadamente 6.000 a.C, e só se espalhou pelo mundo depois que os Europeus vieram se meter por aqui.
Mas a história do rapé não é tão bem documentada. Sabe-se que, na região amazônica do Médio Purus, ele é como um veículo que leva seus usuários e usuárias a “viagens cósmicas”, que facilita a conexão com o divino e com os espíritos da floresta. Ele também é considerado uma medicina poderosa para apaziguar desejos e sentimentos destrutivos no ser humano. Por isso ele é tão sagrado.
Como explicam Santos e Soares, o Médio Purus é uma região habitada, ao longo da história, por diferentes grupos da família linguística Arawá e Aruak, os Apurinã. Esses povos construíram relações complexas, se desenvolvendo através de trocas, rituais, casamentos, e até feitiços. No entanto, esses sistemas sofreram muito com a chegada de extrativistas no século XIX. Por essa época, o uso do rapé foi popularizado entre a alta sociedade. Tempos depois, caiu em desuso — seguindo apenas nas narinas de pessoas mais velhas ou dos próprios indígenas.
Atualmente, vivem na região do Médio Purus os Apurinã, Paumari, Deni, Jamamadi, Jarawara, Suruwaha, Banawa e Hi-Merimã. São poucos os Katukina e os Mamori. Todos esses povos são extremamente importantes para o uso cultural e religioso do rapé.
Do que e como é feito o rapé?
Em sua essência, o rapé feito do pó de folhas secas trituradas de tabaco. Mas cada grupo indígena tem a sua própria tradição, e adiciona a esse elemento outras ervas e cascas de árvores. Alguns exemplos são:
Os Jamamadi, que fabricavam o rapé torrando folhas verdes de fumo em uma vasilha de argila com brasas. Elas eram socadas e moídas em um almofariz de ouriço da Castanha do Brasil até virar um pó bem fininho. Ele era guardado em uma casca de caracol e aspirado por canudos, feitos de ossos ocos de aves ou folhas. Normalmente, era adicionado ao tabaco uma porção de cinza de casca de cacau.
Já os Apurinã secavam superficialmente as folhas de tabaco em um prato de argila sobre brasa, e terminavam o trabalho sobre um pedaço de madeira. As folhas secas eram então pulverizadas e misturadas às cinzas de diferentes madeiras, como a embaúba. Depois, era conservado em uma casca de caracol.
Existem alguns outros tipos de rapé:
- Murici: misturado com cascas da árvore de mesmo nome, é muito usado em rituais de cura física;
- Cumaru: feito por várias etnias indígenas do Acre, ajuda a dar foco e clareza mental;
- Canela de Velho: comum para os Kaxinawá, é usado para equilibrar o físico, mental e emocional;
- Tsunu: feito com a casca de Pau Pereira, é usado pelos Yawanawá para o equilíbrio, limpeza e conexão.
Também existem muitos tipos de rapé para uso não ritualístico, com outras ervas e especiarias. Nesse caso, ele não é feito ou consagrado por pajés ou aprendizes.
E como ele é utilizado?
Existem dois instrumentos principais para utilizar o rapé:
- O tepí, ou tipi, é um tipo de aplicador feito para duas pessoas — uma sopra o pó até a narina da outra pessoa, que irá sentir os efeitos da substância.
- Já o kuripe é um auto-aplicador, com o qual o próprio usuário sopra o rapé até uma de suas narinas.
Geralmente, em rituais, o tepí é utilizado pelo pajé, que sopra o rapé na narina do outro indivíduo enquanto mentaliza boas intenções e energias de acordo com a finalidade desejada. Esse procedimento é realizado em uma narina por vez.
Quando o rapé é inalado, ele desobstrui as vias respiratórias e é absorvido pelo pulmão. Chegando ao cérebro, a substância provoca sensações de bem-estar, expansão de consciência e aguçamento dos sentidos.
Hoje, é muito comum que as rodas de aplicação de rapé sejam realizadas também em cerimônias neoxamânicas de ayahuasca. Mas é preciso muito cuidado: se a sua intenção é utilizar a substância como ferramenta de cura espiritual, tenha respeito por ela e pelas culturas responsáveis por suas origens!
Para que serve o rapé?
Como são muitos os povos que utilizam o rapé, também são muitas as suas serventias — que também vão depender da mistura de ervas utilizada no feitio. De acordo com Soares e Santos:
- Os Jarawara usam o rapé para muita coisa, desde tratamento para gripe, dor de cabeça e insônia até como um calmante mais generalizado, para relaxar antes do banho ou em rodas de amigos.
- No caso dos Apurinã, o rapé é utilizado indistintamente, mesmo que antes ele fosse exclusivo para os xamãs. Entre os Paumari, esse ainda é o caso.
- Os Suruwahá também utilizam o insumo quase diariamente. Ele anima, as mantém ativas e dispostas para o trabalho e seus afazeres rotineiros, ajudando também em situações de mal-estar e dor. Ao entardecer, são formadas rodas de conversa com rapé.
Fora das rodas ritualísticas, o rapé foi muito utilizado como tratamento para sinusites e problemas respiratórios, dores de cabeça e enxaqueca, dores menstruais e insônia. Ele também é utilizado em contextos de Redução de Danos, oferecendo limpezas físicas e espirituais.
Mas cuidado: nem todo mundo pode usar o rapé. Pessoas que possuem problemas cardíacos, grávidas ou lactantes e quem toma remédios controlados podem ter efeitos adversos.
E aí, gostou de saber um pouquinho mais sobre essa substância tão carregada de significado e tradição? Nós adoramos o rapé, e acreditamos que a limpeza que ele proporciona, quando feita com amor e respeito, pode ser maravilhosa. Aqui, ele inclusive ajudou muito a acabar com as crises de sinusite! Fica aí a diquinha de ouro.
Você já participou de uma roda ou ritual de rapé? Conte para a gente como foi sua experiência, e não esqueça de nos seguir lá no Instagram @girlsingreen710 para saber mais sobre o uso de diversas substâncias e estratégias de Redução de Danos.
Até a próxima!
Bom quando o outro sopra… Compartilhar vírus e bactérias hoje em dia tá”tão comum”
Adorei o artigo! Didático e muito esclarecedor, tenho vontade de experimentar o rapé mas sempre tive receio, acho que li o que precisava para experimentar com responsabilidade e respeito a cultura!