No mês da Consciência Negra, o que temos a fazer é ouvir. Hoje, trazemos a você alguns pontos essenciais da aula Proibicionismo, Racialização e Desigualdade realizada pelo coletivo Diverso, com a participação de Dudu Ribeiro e Ingrid Farias.
Estamos muito acostumadas a falar. A escrever e a divulgar aos quatro ventos sobre as principais descobertas sobre a cannabis e a rica cultura que a envolve. Mas, quando o assunto é necropolítica, Guerra às Drogas e o silenciamento de vozes negras, precisamos, acima de tudo, ouvir atentamente.
Por isso, hoje, nossa proposta é um pouco diferente: organizamos algumas das principais falas do historiador, especialista em gestão estratégica de políticas públicas pela UNICAMP, co-fundador e coordenador da organização Iniciativa Negra Dudu Ribeiro, e da fundadora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e integrante da Escola Livre de Redução de Danos, Ingrid Farias, em uma aula especial sobre Proibicionismo, Racialização e Desigualdade. Essa aula faz parte do curso realizado pelo centro regional de formação em políticas sobre drogas e direitos humanos, organizado pelo grupo de estudos, pesquisa e extensão DIV3RSO UNIFESP.
No início de novembro, o Brasil foi colocado como o país com a pior política de drogas, de acordo com o Global Drug Policy Index 2021. Essa notícia não é uma surpresa, e acreditamos que a declaração de Dayana Rosa, Assessora da Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC), contida no relatório, deixa expresso o quanto precisamos escutar para mudar:
“[Pessoas] das classes média e alta recebem um tratamento, enquanto na favela você pode ser assassinado a qualquer momento porque a favela é considerada um “território do tráfico”. Sou afetado por esta guerra diariamente. Todos os dias, e na maioria das vezes, há sempre uma atmosfera de apreensão e angústia. As pessoas estão sempre de luto, sempre há um vizinho que teve uma criança assassinada. E aí a favela fica em silêncio; porque está de luto.”
Vamos aos ensinamentos!
Fonte: brasildefato
As raízes racistas da proibição
O historiador Dudu Ribeiro iniciou a aula fazendo um apanhado geral da história do proibicionismo, e, segundo ele, é impossível contar essa história sem falar da desigualdade e da racialização da população. Precisamos pensar no que a autora Cida Bento chama de pacto narcísico da branquitude, que sob o qual brancos se auto premiam, auto intitulam, compartilham títulos, oportunidades, possibilidades, ganhos e lucros – favorecendo a exclusão de outras raças dentro de uma sociedade dominante.
Para Ribeiro, a proibição de determinadas substâncias psicoativas têm relações intrínsecas com o processo de distribuição desigual de possibilidades de vida, oportunidades de cidadania e de condições de vivência e de existência, sobretudo para marcar a necessidade da experiência negra não ser vista apenas a partir da sobrevivência.
Quando pensamos sobre a história do uso de drogas na humanidade, também nos deparamos com uma relação inerente com nossa própria história como seres humanos. Não existe a história da humanidade sem a história do uso das substâncias que hoje nós denominamos como drogas. Esses usos começaram justamente quando os seres humanos passaram a se alimentar, selando o encontro com plantas, fungos e frutas fermentadas.
Muito mais recente do que isso é a história da proibição. O controle do consumo de substâncias alteradoras de consciência nem sempre foi criminalizador, mas começou por banimentos morais – como na perseguição ao tabaco ou ao café protagonizados pela igreja católica nos séculos XIV e XVI.
A partir do século XIX, como já contamos por aqui, temos no Brasil a primeira legislação que busca punir o uso de algumas substâncias psicoativas: a proibição do chamado pito de pango – ou seja, maconha. Essa proibição, iniciada no ano de 1930, “está imersa em um contexto de renovação das elites coloniais, de perspectivas mais eficazes de controle”. Isso porque, na época, com a Revolução Haitiana, os brancos temiam mais e mais pelo espalhamento dos ideais revolucionários – e eles usaram justamente o sistema legal para conter a população negra.

Dudu salienta que, no momento de escravização de pessoas, um pilar importante do processo é justamente a desumanização. Mas essa lei “empresta” uma certa humanidade para essas pessoas escravizadas apenas para considerá-las criminosas. Ou seja, as pessoas negras não eram consideradas pessoas até serem consideradas criminosas – e não estavam em estatutos jurídicos para direitos civis, políticos e econômicos. O texto da legislação é direto: multa para quem vendesse e pena de prisão para escravos e outras pessoas que fizessem uso da maconha.
A criminalização de populações
Ribeiro aponta que, nos Estados Unidos, podemos observar o começo do incentivo à estigmatização a partir do uso de substâncias – direcionado à determinadas populações que disputavam a sociedade estadunidense principalmente nos postos de trabalho. Foi aí que passamos a ter as ligações de:
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Irlandeses ao uso excessivo do álcool;
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Chineses ao uso do ópio;
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Mexicanos ao uso de maconha;
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Negros com a cocaína.
A mídia foi uma das condutoras principais dessa estigmatização a partir de propaganda – originada na fantasia e nas mentiras. Uma das principais foi o mito do estuprador negro, segundo o qual homens negros utilizavam da cocaína para estuprar mulheres brancas. Casos inventados e mudanças nas legislações baseadas em estigmas produzidos pela proibição de substâncias psicoativas são muitos – um exemplo disso são as mudanças no calibre de armas permitidas em alguns estados pela invenção de que os negros ficavam resistentes a determinadas munições depois que utilizavam cocaína.
“Estamos falando de um momento da história em que a cocaína era utilizada vastamente a partir de suas propriedades medicinais também. Se a gente olhar, ainda existe até o início do século XX prescrições do uso de cocaína até para a dor de dente”, expõe Ribeiro.
Foi também nos Estados Unidos, em um congresso, que tivemos um discurso que foi ponto de partida para o proibicionismo da erva a nível nacional. O médico higienista Rodrigues Dória, em 1915, afirmou que a maconha é uma vingança dos negros contra os brancos por terem usurpado sua liberdade, e que por isso deveria ser proibida a maconha, para que não fosse boicotado o processo civilizatório brasileiro – que era, em suma, o objetivo de ser um país branco.

Guerra às drogas X saúde pública
Nos documentos da ONU, se olharmos o objetivo declarado da proibição, é a proteção à saúde pública. Mas, com esse histórico, é impossível se deixar enganar:
“Se pegarmos desde o pito do pango, passando por Rodrigues Dória e chegar a 2021, com mais de 700 mil pessoas encarceradas, uma média de 50 mil pessoas assassinadas por ano, e todo o estigma e retirada de direitos e distribuição de mortes distribuídas operada pelo Estado e que a Guerra às Drogas proporciona, como esse grande arcabouço sofisticado de reprodução de genocídio, a gente vai ver que a Guerra às Drogas não fracassou, como muitos liberais gostam de defender. Ela funcionou muito bem a partir de seus objetivos latentes e não de seus objetivos declarados, que sempre escamotearam as suas reais intenções.”
A Guerra às Drogas não é apenas um slogan: ela é um aparelho que sequestra o orçamento do estado para investimento na sua capacidade bélica. Portanto, além de não termos o financiamento de estratégias para tratar os usuários e usuárias, temos o financiamento de mortes pelas mãos do Estado.
Ribeiro define os três principais termos da gramática dessa política:
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O próprio conceito de inimigo. “A guerra não é contra as drogas, a gente não vê policial atirando em pé de maconha nem em pedra de crack. Ele atira em pessoas. A guerra é entre pessoas.”
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Toda guerra comporta o efeito chamado efeito colateral: quando pessoas que não estão nem utilizando ou comercializando substâncias psicoativas tornadas ilícitas são alvejadas para efeito da guerra.
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Destruição das linhas de defesa do inimigo. “Considerando que os inimigos eleitos foram negros e negras, sobretudo nas comunidades periféricas (mas não apenas), se a gente olhar o avanço do encarceramento e da letalidade contra mulheres negras no Brasil, e nós, que viemos de famílias negras, sabemos a importância da mulher negra na nossa família, [e sabemos que elas] correspondem também a diversos níveis de proteção e de sobrevivência. O encarceramento de mulheres negras aumentou em 900% nos últimos 20 anos. Se você tira várias mulheres negras de uma comunidade, você desestrutura a comunidade inteira.”
Portanto, falar sobre proibição e desigualdades é falar sobre esse processo de distribuição de morte enquanto política de Estado, controle territorial, monopólio das possibilidades de cura, e reprodução e ampliação das desigualdades socio-raciais construídas no período da escravidão e na colonização do Brasil.
No Brasil, não temos política de drogas, temos política de extermínio.
A necropolítica e os “outros”
Ingrid Farias completa os pensamentos trazidos por Dudu Ribeiro, falando também da necropolítica e da criação do inimigo público.
Necro vem da raiz grega nekros, que significa “cadáver”. A necropolítica então se traduz em “política da morte”. O filósofo Achille Mbembe descreve a necropolítica como “a capacidade de definir quem é importante e quem não é, quem é descartável e quem não é”.
De acordo com Ingrid, a sociedade cria o “outro” para que essa pessoa possa ser desumanizada. Suas mortes e o seu apagamento são, a partir disso, naturalizados e banalizados porque, na verdade, esse ser não é um ser humano, é um ser “outro” – fora da nossa própria realidade, sem os mesmos sentimentos, valores e cultura.
A partir daí é que acontece um assassinato não só físico, mas político e simbólico das crenças e da fé – já que a Guerra às Drogas se transporta através de outros diversos lugares para se referendar. Mas a fé católica, inquestionável à época, era quem ditava as regras morais também no campo do uso de substâncias.
Ao mesmo tempo em que a igreja demoniza algumas plantas e substâncias, ela também impulsiona essa perspectiva da relação social dos vícios, que são considerados aqueles vícios elegantes da década de 30 – como a cocaína e o whisky. Além disso, ela também tem um papel fundamental na masculinização do uso de substâncias.
Entretanto, como aponta Ingrid, essa masculinização do processo de uso das substâncias acontece a partir do ideário do homem branco. Para o homem negro, ser um usuário de drogas sempre carregou a perspectiva de ser a pessoa que tem um problema com álcool, ou de ser o homem que usa cocaína para cometer algum ato sexual. A estética racial ditava quem eram as pessoas que eram drogadas e quem eram as pessoas que tinham problemas com uso de drogas. Então, a moralidade e a mídia, que também consolida essa imagem, chegam na economia.
Para as mulheres, isso também teve um impacto muito diferente.

Mulheres pretas e o uso de drogas
“Independente de a mulher ser usuária, ela vai se debater e se confrontar com essa realidade da Guerra às Drogas”, diz Ingrid.
Ela acredita que precisamos aprofundar as relações de gênero na política de drogas, já que o corpo da mulher e esse ideário da mulher foram assaltados e enviados para dentro desse campo. Seja numa perspectiva criminal ou social moralizante desse debate, onde se coloca as mulheres que fazem uso de drogas sempre no lugar de mulheres loucas, desviantes, que não são capazes e que não tem condições, usuárias são vistas como mulheres que estão desviando à lógica de ser mulher.
“Durante muitos anos eu achei que se eu aprendesse a falar num tom diferente, se eu lesse tantos autores, se eu entrasse num mestrado, que eu ia ser ouvida diferente nos lugares no campo da política de drogas onde eu estava. E o que eu percebo, ao longo da construção desses anos de militância e de luta política, é que, independente do lugar onde você esteja, independente dos títulos que você tenha, se você for uma mulher preta, uma mulher preta favelada usuária de drogas, a sua voz sempre vai ser reconhecida ou a partir do silêncio ou a partir da agressão.”
Além disso, existe a visão da maternidade a partir da ótica de procriação. Atualmente, com a descentralização dos núcleos familiares e com a lenta desconstrução da ideia de família tradicional, podemos até acreditar que isso está mudando. Mas essa mudança tão lenta e gradual não dá conta de amenizar outro efeito da Guerra às Drogas: o controle dos corpos das mulheres pretas.
Ingrid faz um paralelo com os tratamentos manicomiais e o encarceramento da loucura, comum no Brasil e em outros países. Para ela, não é à toa que, na época dos manicômios aqui no nosso país, eram as mulheres, principalmente mulheres negras, que ocupavam a maior parte desse espaço – tidas como loucas, insanas e alienadas. A partir daí, vemos o início do controle a partir da medicalização, com anticoncepcionais e contraceptivos diversos como uma forma de evitar a reprodução de mulheres pretas e pobres.

Racismo é estrutural, mas quem segura essa estrutura?
O Brasil é um país que reconhece que existe racismo, mas que, se você pergunta para as pessoas, elas não se consideram racistas.
Farias explica que a população entende e se vale muito bem desse sistema racial que estrutura nossas relações, mas ao mesmo tempo “dá uma de doido” na hora que em que existe uma cobrança. Para ela, a ferida colonial do racismo não vai ser curada em um processo apenas do amor: ela também é curada a partir do processo da dor e da exposição. Esse processo, tal qual o luto, passa por fases de negação, de culpa, de vergonha até chegar ao reconhecimento e a reparação, que é o necessário para descolonizar.
“A população brasileira precisa passar por um processo importante de retomada das nossas ancestralidades, das nossas memórias, do nosso passado mesmo, mas não podemos fazer isso apagando a contribuição que a sociedade estabeleceu para as pessoas que são brancas.”
Essa realidade comprovada de favorecimento aos brancos é o que precisamos enfrentar para poder descolonizar e reconstruir. São projetos de ruptura.
Ingrid finaliza trazendo uma mensagem fundamental: “assim como existe um momento de romper os silêncios, existe um momento em que determinados grupos sociais precisam entender a necessidade de se calar para ouvir, de retroceder para conseguir construir essa sociedade para frente”.
Agradecemos a oportunidade de apreciar essa aula com duas referências na área de política de drogas, que são extremamente importantes e certeiras ao pontuarem suas realidades – e de milhões de outros brasileiros e brasileiras. Convidamos vocês todos a assistirem a essa aula na íntegra e, como a gente, integrarem esses discursos em suas realidades.
Já passou da hora de assumirmos responsabilidades.
Vamos usar dessa data para refletir?
Até a próxima!