Cultura

Maternidade e os medos do proibicionismo

Leis injustas, intimidação e exploração do medo: ser mãe e usuária em um país proibicionista traz consequências pesadas para a família inteira. Neste post, trouxemos a história de quatro mães que enfrentam esses obstáculos com coragem para criar seus filhos com muito amor em meio ao caos da Guerra às Drogas.

A maternidade é uma missão para a vida inteira. Nunca se deixa de ser mãe, e isso serve tanto para quem gerou os filhos quanto para quem é mãe de coração, que acolhe, cuida e ama. E esse caminho, que já é desafiador por si só, de criar e educar para o mundo, fica ainda mais difícil quando atravessados pela realidade proibicionista, em especial para as mães que são diretamente atravessadas pela Guerra às Drogas e também mães usuárias. Além de sofrer com as incertezas e medos comuns a todas, elas ainda precisam lidar com toda a carga emocional desse cenário hostil e estigmatizado de quem vive em meio à proibição.

De acordo com dados do Infopen Mulheres 2018, 74% das detentas são mães. Nos últimos 12 anos, a população carcerária feminina aumentou 556%, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), enquanto o aumento do número de homens presos foi de 130%. Além disso, 62% das mulheres estão em cárcere por crimes relacionados ao tráfico de drogas, ou seja, três a cada cinco detentas fazem parte desse grupo. Elas são afastadas de suas famílias e podem perder a guarda de seus filhos para sempre.

Isso nos leva a apenas uma conclusão: quem destrói famílias não são as drogas, é o Estado.

A luta do antiproibicionismo vai além do que usamos justamente por isso, por ver as inúmeras vulnerabilidades que esse sistema impõe a outras pessoas, não somente às que estão em nosso convívio. Um exemplo claro disso é a chacina do Jacarezinho: como mães que moram em uma comunidade podem criar seus filhos em segurança tendo que conviver todos os dias com verdadeiros massacres?

Aqui no blog, já falamos sobre como o uso de cannabis pode ser desafiador durante a gravidez pela falta de informações e pelo medo da exposição a médicos. E essa preocupação perdura após o parto, e, mesmo sendo completamente contra essas retaliações, pedimos às mães muita cautela com o que mostram. É muito triste que essa realidade seja assim, mas é. Por isso, fica o alerta para que se tenha cuidado.

Não tem a ver com a saúde da mãe e do bebê ou criança, e sim com a proibição.

Neste post, trouxemos a história de quatro mães incríveis, que nos contaram sobre suas lutas e os medos que a opressão da polícia e do Estado trazem ao dia a dia e à criação de seus filhos. Aqui, vocês podem conferir os detalhes desses relatos.

@maeconheira

Mãe e jardineira experimental.

“O proibicionismo molda todas as formas de expressão da gente que fuma maconha. Então, se existe essa identidade do maconheiro, é porque ela tá forjada na ideia do proibicionismo”, contou @maeconheira.

“Como alguém que fuma maconha com criança em casa, você tem que fazer uma escolha em um dado momento. Você tem as crianças, você precisa escolher, por exemplo, esconder ou não. Eu fiz a escolha de não esconder, mas eu sei que, por exemplo, nas conversas que muitas mães, muitos pais, têm comigo no Instagram, eles dizem que preferem esconder. Eu já tinha esse pressentimento, já tinha decidido quando tinha tido meus filhos, que ia esconder o menos possível de coisas deles, que eu ia tentar não mentir. Você pode adiar algumas respostas né, mas mentir, enfim. E como eu fumava em casa, ficava complicado.”

“Então tem a decisão de contar, e isso é um evento. Pais, por exemplo, que bebem álcool, não têm esse confrontamento com os filhos. Você bebe, os filhos crescem, a gente se acostuma, e vida que segue. Então eu tive que escolher contar pros meu filhos um dia, já contei essa história no Instagram muitas vezes, decidi contar pros meus filhos porque eles começavam a sair de casa pra ir na casa dos colegas, e eles iam pra uma escola de classe média”.

“E aí eu preferi contar pros meus filhos que o que eu fumava era maconha e que era proibido. Eles já sabiam que eu fumava e que não era cigarro normal, de tabaco. Eu tinha falado pra eles que eu fumava uma planta. E quando eles tinham 9 e 6 anos eu decidi contar que a planta se chamava maconha.”

“Mas no geral eu acho que teve um impacto muito positivo pros meus filhos, obviamente não o proibicionismo, mas o proibicionismo fez com que eu tivesse um diálogo mais aberto com meus filhos. E como resultado eu acho que até agora eu tô colhendo bons frutos da minha escolha, porque meus filhos não fumam maconha, e eu como mãe gostaria que eles fumassem o mais tarde possível. Eles têm 16 e 13, e eles nunca fumaram, e bom, a princípio eles não parecem muito interessados.”

“Mas não dá pra saber, mas é isso, eu fico feliz a cada dia que passa. Vida que segue. Eles não fumam, e eu acho que eles encaram um pouco como fitoterápico, aí é ‘o negócio da minha mãe, o remédio da minha mãe’.

Eu continuo sendo uma mãe normal, uma pessoa normal, que reclama, que briga porque eles passam muito tempo no videogame, que não descem o lixo, que não varreram, então eles ficam “aí essa pessoa fuma maconha e é chata? Talvez maconha não seja isso tudo!”

Conforme a @maeconheira relata, vemos o quanto ser aberta e dialogar em casa sobre o uso da cannabis pode fortalecer os laços e até criar uma maior consciência nos filhos sobre os lados bons e ruins da planta. Aqui, inclusive, vocês podem conferir nosso guia Como Falar Sobre Cannabis em Casa!

@quelfcardozo

Mãe, estudante de psicologia e empreendedora.

“Eu acho que [o proibicionismo] afeta de uma forma bem negativa, ainda mais em casos de mãe solo, como é meu caso. Parece que a sociedade coloca a gente como uma escória, como se eu não fosse digna de ser mãe porque eu fumo maconha, porque eu não sou uma boa mãe, que eu não sou responsável, que eu não cuido bem do meu filho, e essas coisas assim. Então a gente acaba ficando afetada”, afirma @quelfcardozo.

O julgamento e a falta de confiança acabam afetando diretamente a vida pessoal das mães. “Confesso que hoje em dia eu não posto mais nada no meu Instagram pessoal sobre isso, não respondo, não falo, e antes eu gostava muito de falar por essas questões antiproibicionistas. Mas hoje em dia eu já não falo, porque querendo ou não, as pessoas julgam muito a gente, e isso pode refletir muito nos nossos filhos né. Então a gente acaba tendo que se esconder mais em proteção a eles também.”

Além disso, as inseguranças sobre o futuro dos filhos devido ao julgamento da sociedade são inúmeras. “A gente se pega pensando mais pra frente. Hoje meu filho tem dois anos, mas eu penso muito em como vai ser, por exemplo, quando ele tiver seis? Eu fico pensando ‘gente, será que ninguém vai poder saber que eu fumo? Será que eu vou ter que fumar escondida?’ Porque já pensou, ele tem um melhor amiguinho na escola e a mãe descobre que eu fumo, e aí ele não vai poder andar com esse melhor amigo porque a mãe é uma puta duma preconceituosa. Então a gente viaja muito nessas coisas, no que eu fumar pode afetar na vida do meu filho, ele pode ser proibido de ir na casa de alguém porque a mãe não é um bom exemplo, porque ele não vai ser um bom exemplo. A gente acaba se pegando nessas questões assim e machuca, machuca a gente saber que uma coisa tão nada a ver pode acabar refletindo no futuro deles e que é muito provável que um dia isso vá acontecer, infelizmente.”

“Então, bem resumido, quanto tu me pergunta no que que eu acho do proibicionismo afeta a maternidade é isso, é a gente ter que se esconder por medo do que as pessoas vão pensar. Sabe, uma coisa que a gente brigou a vida inteira, a gente conseguiu se libertar do proibicionismo dos pais, da cidade, e a gente acaba se pegando nesse ciclo vicioso.

A gente precisa se esconder porque isso pode refletir neles e a gente não quer que isso se reflita neles, então é uma situação muito complicada, uma situação muito triste, e é por isso que a gente tem que tá na luta, trazendo informação pras pessoas, pra ver que não é assim,eu não sou menos mãe porque eu sou maconheira e meu filho não é menos digno de ser amigo de alguém porque ele tem uma mãe maconheira, então a gente segue na luta e na fé de que um dia as coisas vão melhorar muito”, finaliza.

E essas inseguranças não são injustificadas: não são poucas as mães que são afastadas de seus filhos apenas por fazerem uso da planta. O que parece absurdo para a gente é uma realidade vivida na pele por inúmeras pessoas, como aconteceu como a @diariodeumamaeconheira, que também contou nossa história para a gente aqui.

Davi, nenezin da @quelfcardozo

@maelegalize

Mãe, ativista canábica, empreendedora e poeta.

A @maelegalize também traz em seu relato algumas consequências mais pesadas do proibicionismo: a insegurança não apenas do julgamento, mas de sofrer denúncias. “Já fiz roda de conversas com mães e são tantas as formas que o proibicionismo afeta nós, que somos mães usuárias, a um ponto que é muito importante sobre a gestação, sobre a gente falar com nosso médico sobre o uso da cannabis, sobre nós sermos usuárias. A proibição nos afeta de tal forma, que além do medo do que vem da maternidade, nós sentimos o medo por sermos usuárias de maconha.”

“A gente deixa de ter acesso a um pré natal mais completo por medo mesmo de dizer pro médico que a gente é usuária, medo de retaliação, medo de tomarem a criança quando ela nascer. Medos relacionados a diagnósticos exagerados sobre problemas psiquiátricos. Inclusive uma das meninas já passou por isso também: a família acusou ela de louca porque ela era usuária e tomaram o filho dela.”

Se como mulheres já sofremos, quando mães, o sofrimento é em dobro. “Enquanto a gente como mulher maconheira já sofre algumas retaliações, a gente consegue lidar de outras formas, porque alguém não pode interferir diretamente na sua vida. Mas quando você tem um filho, você fica à mercê de toda uma sociedade. Você tem medo do seu vizinho te denunciar, você tem medo da sua família te denunciar. Então o proibicionismo traz esse medo melancólico pra gente que é mãe, não é um medo banal, é um medo que pela lei, por uma lei injusta, tomem o nosso filho apenas porque nós fumamos cigarro de maconha”, alerta.

“Você vê as pessoas do seu entorno inventando coisas sobre você. Se você não fosse usuária ninguém iria inventar que você é traficante. Eu já morei em alguns lugares com meu filho, então, na minha cidade mesmo, que tem oito mil habitantes, e já passei por umas situações constrangedoras, ao ponto de que a polícia passava na porta da minha casa por causa do que as pessoas falavam, falavam que eu era traficante”.

“Eu aprendi a me impor, mas eu passei situações constrangedoras na escola do meu filho que outras mães não passam, só por ser usuária. Eu já tive denúncia na assistência social, mas vai na casa da gente, vê tudo no lugar, vê uma criança saudável, vê uma mãe saudável, vê ali que existe um criar diferente. A real é que não é fácil saber lidar, pra mim, é que hoje eu tenho amadurecido, já tem cinco anos, mas passar por isso só por ser maconheira, sabe, ser discriminada, as pessoas olharem torto, falarem mal de você, situações que constrangem, situações que podem até mesmo te levar pra cadeia.

Segundo ela, uma das principais questões é a dualidade no tratamento das mães e das mães que são usuárias “porque todas nós somos julgadas, mas olha só como eles nos olham, como eles podem nos destruir”.

Por isso, mães que não são usuárias, pedimos também a empatia e o respeito à individualidade de cada uma. Nossas decisões não são melhores e nem piores, e só dizem respeito a nós mesmas!

@maelegalize


@barbara_arranz

Mãe, biomédica, fundadora e CEO da Linha Canabica.

A história da @barbara_arranz também é cheia de luta, e com uma briga cada vez mais comum aqui no Brasil: pelo direito de tratar seu filho com a cannabis medicinal.

“Eu tive a Duda com 16, depois com 21 anos eu já tinha três filhos, e o último é o Raulzinho, que está no espectro autista. A maconha pra mim nunca foi um tabu, sabe, nunca levei isso, talvez por eu ter vindo de uma cidade pequenininha onde a maioria das pessoas são maconheiras e toda a galera é gente boa sabe assim, então eu nunca tive um problema. E eu, por ter essa autenticidade, eu sempre defendi com unhas e dentes. Quando o Raul foi laudado com Asperger, eu na hora que eu vi a médica ali descrevendo aquele monte de medicação, dentre elas a ritalina, eu olhei pro Gustavo, meu marido, e falei ‘não, isso não, eu quero tratar o Raul com cannabis, com maconha’”.

Como já contamos aqui no blog, o autismo é uma das condições que a cannabis pode ajudar a tratar. Ela age no sistema endocanabinoide e pode diminuir convulsões, tiques, explosões, depressão e ansiedade.

“Aí eu fui atrás, conheci a Margarete, a Apepi, que foi o único lugar que acabou me abrindo os braços para o conhecimento e até para ter a oportunidade de estar chegando mais próxima da medicação, e ali eu comecei a frequentar. Eu saía de São Paulo todo final de semana, pegava um ônibus pra estar ouvindo as palestras da Apepi, para estar mais dentro da associação, e tal. E eu fiz isso durante quase um ano, ir e voltar de ônibus São Paulo – Rio de Janeiro, mas ia com tudo, pegava a medicação do Raul e voltava pra São Paulo”, conta a mãe.

“Desde o momento em que eu optei pelo tratamento, eu sempre joguei muito aberto. ‘Nossa mãe, mas com maconha? É droga!’ E aí eu comecei a explicar, por eu já ter a biomedicina na minha vida, todo esse entendimento de funcionamento celular, de absorção, eu me aprofundei muito né, até pra entrar na questão de qual genética seria pro Raul. Então passei a visão pra eles, sempre muito aberto: não é crime, não é nada que vocês tenham que ter vergonha, não é algo para se esconder. E aí começou uma convivência com a maconha dentro de casa.”

E essa história, que começou assim, rendeu uma missão ainda maior para a mãe, que começou a empreender no ramo canábico. “Quando eu parti para empreender com a maconha, que até a Duda, minha filha, que mostrou o chá de bebê de uma das Kardashian com tema da maconha e eu falei “nossa, super interessante né, deixa eu pensar”. E aí eu comecei a pesquisar, estudar mais sobre a epiderme, conversar com amigas farmacêuticas, com minha melhor amiga, que é química. E aí, papo vai, papo vem, vamos fazer então”. Com esse incentivo, ela deu o primeiro passo para a criação da Linha Canabica.

“Eu tinha uma bolsona de feira, então eu colocava tudo dentro daquela bolsa e ia de porta em porta com meus filhos no carro, porque não tinha com quem ficar. Ia de porta em porta, com a sacolona oferecendo “ó o produto” e tal. E aí as pessoas riam de mim, “ai que louca, nossa, até parece, onde você acha que vai parar com isso? Isso não pode aqui” e tal. E aí eu comecei a entrar na questão desse proibicionismo, do conservadorismo, essa parada chata pra caralho que a gente tem que de alguma forma obedecer toda uma parada, e eu sempre fui contra, sempre fui autêntica, não tinha porquê. Meu filho tava usando, tava dando um resultado incrível, eu precisava passar essa visão para muitas pessoas. E aí eu comecei a falar muito em casa sobre praticar uma desobediência civil e comecei a pegar um amor assim por essa questão. Em casa sempre foi muito aberto pra se falar, eu tenho que falar, é um dever meu passar isso pros meus filhos, que sim, que por enquanto eu trabalho, pratico uma desobediência civil no Brasil, pacífica, corro riscos sim de ir presa. Então eu falo pra eles, eu falo ‘olha, se a mamãe um dia for presa, tenham certeza que eu to indo presa feliz e que a gente vai lutar ao máximo para que a mamãe saia dali o quanto antes, mas é importante isso que a mamãe faz, a mamãe vai estar indo presa porque ela pratica uma desobediência civil em um país completamente conservador’.”

De acordo com ela, seus filhos já passaram por situações incômodas, até mesmo na escola, por causa da cannabis. “Mas eles enfrentam muito bem. Eu acho que isso vem muito de casa né, do que eu exponho pra eles, eles viram a melhora do irmão. A gente é uma família muito unida, eu, o Gu e os três. Por eu estar com o Gustavo desde sempre também, o Gustavo é uma pessoa que, porra, o Gustavo é um principe assim em todos os sentidos possíveis. A Duda, que veio primeiro, que me acompanhou, cresceu junto comigo, cresceu em todos os sentidos, ela sabe a força que eu sempre tive e tudo que eu batalhei sempre pra conseguir. Eles vendo a melhora do irmão em casa, vendo a forma com que eu fazia os produtos, eles ali perto do que é um óleo, o que é a plantinha, como é uma extração…”

“Então eu me aprofundo muito nesse lance científico para que eles sejam pessoas que, quando alguém aponte o dedo pra eles, eles saibam responder à altura, e não à altura com xingamento, com ódio ou com algo vazio. Eu quero que eles sejam maduros o suficiente para rebater e pra passar um conhecimento de fato, porque existe esse conhecimento. ‘Olha, eu tenho um irmão autista, e ele voltou a ir na escola, meu irmão fala, então o que você quer debater comigo? Quer debater comigo como a maconha age no nosso organismo? Então eu vou te explicar o sistema endocanabinoide”. Eu dou aulas pra eles pra que eles sejam adultos carregados de informação.”

@barbara_arranz

É incrível como a informação pode moldar positivamente o futuro de toda uma família, não é mesmo?

Todas essas mulheres representam um legado de força e de luz a essa luta tão necessária que é o antiproibicionismo. Mas não precisava ser assim: se não fossem essas políticas públicas tão opressoras, as mães poderiam se preocupar em apenas dar uma criação maravilhosa aos seus filhos, livres de medos ou tabus. Nossa luta também é por elas, e por todas as futuras mães que vivem a mesma situação.

Esperamos que esses relatos despertem a empatia em todos que ainda não engajaram no antiproibicionismo, e que infle ainda mais a vontade de lutar pelas vidas de tantas prejudicadas pela Guerra às Drogas. Vamos falar mais sobre isso?

Um feliz dia das mães a todas as mães, usuárias ou não usuárias.

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