A relação entre a saúde mental e o consumo de substâncias tem sido debatida extensamente pela comunidade médica. Mas afinal, o que já se sabe sobre os efeitos positivos e negativos que a maconha pode ter nesse quesito?
Setembro Amarelo chegou, e a pauta é, mais do que nunca, a nossa saúde mental. Como usuários e usuárias, com certeza conseguimos enxergar a maneira como nossa plantinha favorita mexe com nossos sentimentos, pensamentos e sensações no dia a dia – ou a cada vez que a consumimos. Mas, em um nível mais profundo, pode ser difícil entender como ela se relaciona com a nossa psique.
Na comunidade médica há um grande dilema, do tipo “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”. Nesse caso, da relação entre cannabis e distúrbios mentais, a pergunta é: as pessoas têm distúrbios por conta do seu uso, ou fazem o uso por conta de seus distúrbios?
Acreditamos que, quando dois tabus tão grandes se unem, é impossível que surjam dúvidas e até mesmo teorias meio furadas pelo meio do caminho. Também sabemos que a relação entre a cannabis e a saúde mental pode ser dicotômica: enquanto em muitos casos ela pode ajudar, em outros ela pode, sim, prejudicar. Tudo depende de uma tríade bem importante: o tipo de erva consumida, a quantidade e a autoconsciência.
Então, que tal mergulhar nesse assunto e entender melhor essas polaridades? Vem com a gente!
Saúde mental: um conceito amplo
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “a saúde mental é um estado de bem-estar em que um indivíduo percebe suas próprias habilidades, pode lidar com o estresse normal da vida, pode trabalhar de forma produtiva e é capaz de dar uma contribuição para sua comunidade.”
A OMS enfatiza que a saúde mental é “mais do que apenas a ausência de transtornos mentais ou deficiências”. O auge da saúde mental não é apenas evitar condições ativas, mas também cuidar do bem-estar de maneira contínua. E, do jeito que o mundo anda hoje em dia, isso pode parecer incrivelmente difícil.
Entretanto, todos correm o risco de desenvolver um transtorno mental, independentemente da idade, sexo, renda ou etnia.
Nos EUA, os transtornos mentais são uma das principais causas de deficiência. Circunstâncias sociais e financeiras, fatores biológicos e escolhas de estilo de vida podem moldar a saúde mental de uma pessoa. Aqui no Brasil, essa situação também se agrava à medida que o país volta a regredir economicamente. Afinal, a depressão não tem classe social, mas é impossível acreditar que a pobreza, a insegurança alimentar e o desemprego não afetam negativamente a saúde mental de qualquer indivíduo.
Estudos mostram que homens e mulheres desempregados tendem a sentir sintomas de depressão, que se aprofundam com a duração do período fora do mercado de trabalho. Em 2020, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) apontou que 19 milhões de brasileiros se encontram em situação de fome. Isso tudo com certeza traz ainda mais vulnerabilidade a questões relacionadas à depressão, ansiedade e até mesmo suicídio.
Além disso, uma grande parte da população que lida com transtornos de saúde mental tem mais de uma condição ao mesmo tempo. É importante observar que uma boa saúde mental depende de um delicado equilíbrio de fatores, e que vários elementos da vida e do mundo em geral podem trabalhar juntos para contribuir para os transtornos.
Alguns dos principais tipos de transtornos da saúde mental são:
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Transtornos de ansiedade, incluindo transtorno do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo e fobias;
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Depressão, transtorno bipolar e outros transtornos do humor;
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Distúrbios alimentares;
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Transtornos de personalidade;
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Transtorno de estresse pós-traumático;
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Transtornos psicóticos, incluindo esquizofrenia.
Em quais casos a cannabis pode ajudar?
O professor associado de psicologia na University of British Columbia Zach Walsh contou ao site Leafly que a única maneira de saber realmente se a doença mental precede o uso de cannabis ou o contrário seria seguir as pessoas desde a juventude. Isso porque a maioria das pessoas começa a usar cannabis na mesma época em que demonstra sinais de doença mental – entre a metade e o final da adolescência.
Segundo ele, se alguém começa a fumar aos 14 e aos 18 é diagnosticado com depressão, seria difícil dizer se a pessoa estava sentindo os sintomas do distúrbio (algo como uma síndrome pré-depressão) e lidando com eles fumando maconha.
Walsh ainda afirmou que a evidência mais forte de seu laboratório sobre a eficácia da cannabis está entre os pacientes que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), particularmente na redução de pesadelos. Vários centros de veteranos de guerra já estão revisando pesquisas sobre o assunto e até mesmo financiando a cannabis medicinal – até três gramas por dia – para alguns pacientes vinculados.
Mas não é só isso. Como o médico psiquiatra e redutor de danos Rafael Baquit já nos explicou aqui no blog, a cannabis tem potencial para ajudar a tratar depressão, ansiedade e condições afins. Para ele, a medicina nunca conheceu algo desse nível. A planta conta com centenas de substâncias diferentes, que agem no sistema endocanabinoide, que regula todas as funções do corpo – a homeostase.
Mas ele também afirma que é preciso pensar na cannabis como um possível complemento, e não como um único remédio. Existem milhares de variações genéticas de cannabis, e o problema é que ainda não se sabe exatamente como a combinação funciona perfeitamente. O tratamento é um conjunto de ações, atitudes e mudanças, e não pode ser apenas uma planta.
Existem pesquisas que mostram o potencial do CBD como um agente no tratamento da depressão. Mas isso não significa que a gente não tenha que tomar certo cuidado, nem consumir a erva achando que ela pode ser a solução de todos os problemas!
Já a relação do THC com a ansiedade é muito interessante. Baquit nos explicou que, conforme você vai aumentando a dose do THC, a possibilidade de aparecerem sintomas de ansiedade também aumentam. A forma como se usa a cannabis e sua qualidade também pode ser a chave nisso tudo: hoje em dia, com os diversos cruzamentos, a maconha ficou muito mais forte. As concentrações de THC nessas novas cepas são muito mais altas do que nas décadas passadas.
O CBD pode ser mais indicado por agir de forma ansiolítica, mas precisamos lembrar do entourage effect, o efeito comitiva: a reação do seu organismo à cannabis se dá de acordo com a relação entre os canabinoides presentes na erva, os terpenos, e demais substâncias. Para o médico, por essa razão, não é tão interessante falar apenas do CBD ou do THC, já que, juntos, eles ajudam a suprimir os efeitos negativos um do outro. Por isso, os medicamentos full-spectrum são tão importantes!
E como ela pode atrapalhar?
Como já contamos a vocês, o consumo de cannabis – assim como qualquer outra substância – não vem livre de riscos. O principal risco para a saúde mental do usuário, segundo o professor e pesquisador Sidarta Ribeiro, é o desenvolvimento de psicose, ou seja, a experiência de perder o contato com a realidade. Os sintomas variam entre os indivíduos, mas podem incluir pensamentos incomuns, ver ou ouvir coisas que não existem e crenças paranoicas ou delirantes.
Embora o THC possa causar paranoia em pessoas sem doenças mentais, as evidências sugerem que aqueles que desenvolveram uma doença psicótica em resposta ao uso de cannabis provavelmente estavam predispostos a isso.
No livro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais, de Paulo Dalgalarrondo, são conceituados três tipos de psicose causadas por uso de substâncias:
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Psicoses tóxicas: quadros psicóticos causados diretamente pela ação da substância no cérebro. São quadros de curta duração (geralmente horas ou poucos dias), que vão embora assim que a substância deixa o sistema nervoso. Esses quadros geralmente incluem rebaixamento do nível de consciência, confusão mental, ilusões e alucinações visuais, medo e perplexidade.
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Psicoses induzidas por substâncias: duram dias ou, no máximo, semanas. Ocorrem geralmente após períodos de uso intenso. Podem se manifestar como quadros paranoides, quadros maniatimorfos, esquizofrenimorfos ou polimorfos. São mais raros no caso de uso de cannabis.
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Psicoses funcionais: a diferenciação em relação às psicoses funcionais desencadeadas pelo uso de substâncias pode ser mais difícil, justificando a psicose funcional (esquizofrenia, psicose afetiva, etc) a duração mais longa do quadro psicótico, podendo chegar a mais de um mês. Pode haver ainda a ocorrência de outros episódios, mesmo não relacionados ao uso de substâncias, e a presença de sintomas residuais, como retraimento social, distanciamento afetivo, entre outros.
Nas últimas décadas, houve uma série de estudos que apontaram uma relação consistente entre o uso de cannabis por adolescentes com um maior risco de desenvolvimento de psicoses funcionais como a esquizofrenia, principalmente em casos de predisposição familiar.
Depressão e uso abusivo de cannabis também estão associados, mas não está claro se a associação é causal ou se fatores compartilhados podem aumentar a probabilidade de consumo de cannabis e depressão. Além disso, como já mencionamos, o uso de cannabis rica em THC pode ser um gatilho para crises de ansiedade.
Mas e aí, o que fazer?
A maioria dos médicos recomenda que uma pessoa se abstenha de cannabis se ela tiver um histórico pessoal ou familiar de doença mental. Mas, se alguém com esse tipo de histórico decidir consumir cannabis de qualquer maneira, existem algumas maneiras de reduzir os danos.
A abstinência é a forma mais eficaz de evitar os riscos psiquiátricos da cannabis. Além disso, atrasar o uso de cannabis o máximo possível e, de preferência, até depois da adolescência, também é indicado.
A questão principal tem a ver com o desenvolvimento do cérebro. É desejável minimizar o uso antes de o cérebro ser desenvolvido – idealmente até os 24 ou 25 anos, mas com certeza até os 21. Também é recomendado que as pessoas optem pela cannabis com menor teor geral de THC e uma proporção mais alta de CBD para THC, já que o THC está associado a experiências psicóticas ou de ansiedade.
Se você tem um parente de primeiro grau – mãe, pai, irmão, irmã ou filho – que sofreu um transtorno psicótico, vale a pena ser ainda mais cauteloso.
O risco é maior quanto mais próximo você estiver do indivíduo afetado. Por exemplo, o risco de esquizofrenia é 6,3x maior naqueles com um parente de primeiro grau afetado e 2,4x maior naqueles com um parente de segundo grau afetado. Os parentes de segundo grau incluem tias, tios, sobrinhas, sobrinhos, meios-irmãos, avós e netos.
É importante ressaltar que as pessoas com vulnerabilidades de saúde mental que optam por não se abster de cannabis ainda podem fazer escolhas para reduzir o risco para sua saúde mental.
Aqui, vamos mostrar algumas estratégias de Redução de Danos para o consumo de cannabis nesses casos:
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Considere a abstinência. Essa, por mais que não seja o cenário ideal para muitos usuários, é a melhor maneira de evitar os riscos para a saúde mental do consumo de cannabis. Considere isso com mais ênfase se você tiver um parente próximo que sofre de psicose.
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Retarde o uso até depois da adolescência. Acredita-se que a cannabis afete o desenvolvimento do cérebro dos adolescentes, o que pode ser responsável por alguns dos riscos à saúde mental.
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Se você optar por consumir, procure por cepas de cannabis com menor teor geral de THC e/ou com uma proporção mais alta de CBD para THC. Evite a maconha ilícita, que não foi testada. Nesse caso, autocultivo pode ser uma boa opção!
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Comece devagar e vá com calma para reduzir o risco de efeitos colaterais. Se você tiver uma experiência mental ruim enquanto usa cannabis, pare de consumi-la temporariamente e procure aconselhamento de profissionais antiproibicionistas.
Cada organismo é único, assim como cada tipo de cannabis disponível. Então, ter ao seu lado um(a) psicólogo(a) ou psiquiatra que saiba do assunto é a estratégia de Redução de Danos ideal. Esses profissionais vão ajudar você a entender as motivações por trás de seu uso, a frequência ideal e até ajudar você a refletir sobre o seu consumo. Essa é a melhor recomendação que podemos dar a qualquer indivíduo que suspeite ou seja diagnosticado com qualquer tipo de transtorno mental.
Saúde mental é coisa séria, e cannabis também! Vamos conversar mais sobre isso?
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