Imposição de crenças, punitivismo e privação de liberdade através de internação compulsória ou voluntária: esses são apenas alguns dos elementos que fazem parte do dia a dia em diversas comunidades terapêuticas (CTs) no país. E não é a gente que tá falando, não! Essa realidade foi apontada por vistorias realizadas pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2017, em 28 estabelecimentos espalhados por 12 estados brasileiros.
Em 30 anos de Luta Antimanicomial no país, estas instituições significam o maior retrocesso na adoção de políticas públicas humanizadas. Como falamos anteriormente aqui no site, há um paralelo doloroso entre a loucura e os usuários de substâncias. Embora hoje já não existam, em tese, manicômios, as CTs estendem o punitivismo disfarçado de cuidado para quem tem problemas com o uso de drogas.
O pior é que muitas das pessoas que estão nesses locais são internadas à força, contra sua própria vontade. Ou seja: a criminalização de quem faz uso de substâncias se dá, por vezes, de forma sutil. Mas nós, que acreditamos na Redução de Danos, precisamos estar de olhos bem abertos e entender como todo esse trabalho de opressão e higienismo opera na nossa sociedade — bem debaixo do nosso nariz.
Vem com a gente entender mais sobre as problemáticas por trás da internação compulsória e das comunidades terapêuticas, e como tudo isso vai contra os princípios da RD e da Luta Antimanicomial.
Uma breve retomada: o que é luta antimanicomial?
O movimento antimanicomial começou na Itália, mas chegou ao Brasil logo após o fim da ditadura militar. O Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental foi um dos principais responsáveis por trazer à tona denúncias e acusações ao sistema nacional de assistência psiquiátrica — incluindo tortura, corrupção e outros graves problemas. Sobretudo, essa união de trabalhadores visava melhores condições de assistência à população vulnerável e a humanização dos atendimentos.
Para você ter uma ideia, os avanços dessa luta incluem:
Implantação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Especializados em saúde mental, eles oferecem tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente. Suas equipes incluem médicos, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, entre outros especialistas. O melhor de tudo é que seu atendimento é totalmente gratuito, através do importantíssimo Sistema Único de Saúde (SUS).
A reforma psiquiátrica. Desde 2001, essa nova política foca nos CAPS para trazer um novo tipo de cuidado. Através de suas premissas, os sujeitos não precisam ser excluídos de suas relações sociais. Entende-se que elas são fundamentais para a recuperação e reinserção de cada indivíduo na sociedade — bem como vínculos com trabalho, arte, cultura, educação, entre outros.
Aproximação da Redução de Danos. Os CAPS AD, também através do SUS, trazem um cuidado em liberdade para usuários de diversas substâncias — desde o álcool até o crack. Através dos conceitos da RD, muitos buscam uma abordagem integrativa, holística e individual para tratar cada indivíduo de acordo com suas possibilidades, vivências e vontades.
O grande problema é que, com o desmonte e a falta de investimentos, os CAPS não conseguem dar conta da demanda, e muitos dos usuários de drogas recebem um tratamento que está longe do ideal. Tudo com o apoio da lei.
Quais são os tipos de internação previstos por lei?

Um dos maiores avanços da Luta Antimanicomial aconteceu em 2001, com a sanção da Lei Federal 10.219. Além de descentralizar o cuidado, tirando das mãos dos hospitais psiquiátricos, ela trouxe diversas outras diretrizes para orientar possíveis tratamentos. Seu texto prevê três tipos de internação:
Voluntária: a que acontece com consentimento do usuário;
Involuntária: internação a pedido de terceiros;
Compulsória: determinada pela Justiça.
Para muitos, isso foi um marco fundamental para a garantia dos direitos de pessoas com problemas psiquiátricos. O pesquisador em saúde mental e atenção psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz, Fernando Freitas, afirmou em entrevista que “é um avanço que a internação não pode ser compulsória, e quando ela é feita [de modo compulsório], tem que ser comunicada. Retirar a liberdade de uma pessoa por um tempo determinado passa a ser um abuso, uma violência, e só pode ser autorizada pela Justiça”.
Mas, quando o assunto é uso de substâncias, o rolê é outro. Em 2019, o governo federal sancionou a Lei 13.840, que autoriza a internação compulsória de usuários mesmo sem autorização judicial.
Segundo a norma, a família ou qualquer responsável legal pode pedir a internação de um indivíduo. Além disso, o pedido pode ser apresentado por servidor da área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).
Ou seja: um usuário de drogas no Brasil pode não ser punido de maneiras convencionais, mas corre o risco de ter seus direitos negados a qualquer momento.
A lei também inclui as comunidades terapêuticas. Já ouviu falar delas?
Os problemas das comunidades terapêuticas
Com o aumento do consumo de crack, as políticas higienistas contra usuários passaram a ganhar força. Por isso, vemos que os manicômios não acabaram — apenas mudaram de nome. É o que pontua o ex-diretor da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Fábio Belloni, em entrevista.
As comunidades terapêuticas seguem exatamente a mesma lógica dos sanatórios, a partir da segregação e do isolamento social. Essas políticas vão contra a Reforma Psiquiátrica e a Redução de Danos, que entendem a importância da vida pessoal e individualidade. Outra grande violação é contra a liberdade religiosa. As instituições colocam a fé e os cultos como elementos fundamentais para uma “cura”.
Em 2017, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. Tal documento aponta que 26 das 28 instituições visitadas atuavam com internação compulsória, mesmo antes da aprovação da lei que a permite. Além disso:
- Onze dos locais visitados promoviam internação de adolescentes;
- 16 dos locais inspecionados foram identificadas práticas de castigo e punição;
- Pelo menos 16 das 28 instituições não respeitavam a diversidade de orientação sexual e a identidade de gênero.
Comunidades terapêuticas financiadas pelo governo

De acordo com uma investigação inédita da Agência Pública, quase 70% dos repasses do Ministério da Cidadania no primeiro ano de governo de Bolsonaro foram para CTs com direcionamento religioso. De mais de R$ 150 milhões, pelo menos R$ 41 milhões foram destinados a comunidades evangélicas. Outros R$ 44 milhões foram para centros com viés católico.
Ainda segundo o levantamento, mais de 60% das CTs contratadas pelo governo têm ligações diretas com grupos religiosos. Elas são presididas por padres, missionários e pastores. Muitas dessas comunidades são as mesmas denunciadas pelo relatório do MPF por violações a direitos humanos básicos.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) publicou, no ano passado, uma nota de repúdio a estes repasses. No texto, que você pode conferir na íntegra por aqui, são destacados os relatos “de práticas ineficazes e violações de direitos humanos provenientes destas instituições”, como:
- laborterapia, ou seja, substituição da contratação de profissionais por mão de obra dos internos;
- leitura de bíblia, cultos e orações;
- falta de projetos terapêuticos singulares.
Segundo a associação, essas práticas ignoram qualquer lógica de tratamento e ressocialização que considera “o cuidado compartilhado de pessoas com problemas relacionados ao álcool e outras drogas”.
Sim: o uso problemático de substâncias não é tratado de forma devida porque alguém ganha muito bem com isso. E a Redução de Danos passa longe da comercialização do cuidado.
Por que lutar pela Redução de Danos?
A ótica da Redução de Danos traz uma forma de cuidar que se opõe ao proibicionismo. Ela é pensada de usuários para usuários e, por isso, prioriza o respeito a cada história de vida. O que levou o usuário a recorrer às substâncias? Para responder essa questão, a RD usa o acolhimento e o diálogo, sempre preservando a individualidade e a liberdade de cada pessoa.
A abstinência não é sempre a melhor saída! O processo de recuperação de usuários deve ser construído em conjunto — com ele e profissionais habilitados. As pessoas podem ter diferentes formas de se relacionar com as drogas, e o uso delas não é sempre problemático.
Acreditamos que investir nos CAPS e fortalecer as políticas públicas humanizadas é uma maneira de empoderar indivíduos e enfraquecer os mecanismos responsáveis pela Guerra às Drogas. Afinal, um dos maiores mitos cultivados pelo proibicionismo é de que a repressão pode ser eficaz. Mesmo com a coibição, o que ganhamos não é uma diminuição no uso ou a conscientização da população — e sim chacinas, aprisionamentos em massa e perseguições a segmentos sociais específicos.
Aqui, você pode entender melhor o que é a Redução de Danos e a sua importância em nosso cenário atual.
Seguimos na luta por mais informação, que é essencial na luta contra o apagamento de usuários no nosso país. Vamos resistir juntos e buscar pelo fortalecimento dos nossos CAPS? Lembrem-se: garantir tudo isso através dos processos democráticos é fundamental. Por isso, informe-se sobre as propostas de seus candidatos antes das eleições deste ano.
O SUS pode, sim, salvar.
Para mais informações sobre o uso seguro de substâncias, segue a gente lá no Instagram @girlsingreen710.
Até a próxima!
Editado em: 31 de agosto de 2023.