Haxixe

Clube do haxixe: Os comedores de hash de Paris

A primeira regra do clube do haxixe é ficar doidão. O Club des Hachichins reunia a elite literária de Paris em encontros que investigavam os efeitos da substância. Vem conhecer!

Enquanto o Oriente já conhecia, há milênios, a magia da maconha e das extrações, o Ocidente só foi tomar gosto por essa iguaria no século XIX. Conta a história que os soldados do exército de Napoleão, após conquistar o Egito, retornaram à França levando o haxixe e algumas culturas de uso. E foi por essa época que ele caiu nas mãos de alguns nomes notáveis da sociedade parisiense — conhecidos como os comedores de haxixe do Club des Hachichins.

Mas o Clube do Haxixe não se reunia apenas para usar a substância e ficar de boa. Os pensadores da época investigavam os efeitos de altas concentrações de canabinoides na mente humana, produzindo saberes e intervenções artísticas. Intelectuais como Jacques Joseph Moreau foram, inclusive, responsáveis por experimentos bem parecidos com o que é feito atualmente pela ciência moderna. 

Eles buscavam, no haxixe, uma chave para entender como funciona a mente humana. E chegaram a conclusões muito interessantes!

Aqui, vamos contar um pouco mais sobre esse clube de pensadores excêntricos e suas conclusões sobre os concentrados canábicos, em uma época na qual o proibicionismo ainda não era um problema. Vem com a gente viajar no tempo e mergulhar nessa história.

Thomas de Quincey, autor de “Confissões de um Comedor de Ópio” deitado após consumo de ópio
Thomas de Quincey, autor de “Confissões de um Comedor de Ópio” Fonte: The times

Como surgiu o interesse pelo haxixe no Ocidente

Segundo a revista High Times, acredita-se que o haxixe tenha encontrado seu caminho para a Europa na década de 1840. E ela está ligada a alguns fatores chave: 

  • A conquista do Egito por Napoleão;
  • Uma alta no interesse em tudo que era Oriental;
  • O movimento romântico francês, ligado a prazeres e sensações, no mínimo, diferentes; 
  • A influência dos primeiros grandes escritores sobre drogas, após o lançamento das “Confissões de um Comedor de Ópio”, de Thomas De Quincey.

Mas existe uma figura que pode ser considerada a principal responsável pela “febre do hashish”: Jacques Joseph Moreau. No início de sua carreira médica, o francês teve a oportunidade de viajar e explorar lugares mais longínquos, como Egito e Turquia. Nessas viagens, ele conheceu o haxixe e ficou fascinado por seus efeitos psicológicos que, em sua visão, podiam imitar a loucura

Moreau decidiu então experimentar a substância, juntamente com um grupo seleto, em um ambiente controlado, com o objetivo de descobrir se o haxixe poderia oferecer uma chave para entender (ou até curar) transtornos mentais.

ilustração retratando Jacques Joseph Moreau, figura que pode ser considerada a principal responsável pela “febre do hashish"
Retrato do século 19 do pioneiro psiquiatra francês, Jacques Joseph Moreau, a figura que pode ser considerada a principal responsável pela “febre do hashish”

As experiências de Moreau

Moreau iniciou seus estudos no Hospital Bicêtre, nos arredores de Paris. Ele foi o responsável por criar o movimento conhecido hoje como psicofarmacologia, experimentando substâncias empregadas como psicomiméticas — ou seja, que refletem os sintomas da “insanidade”. Um grandíssimo pioneiro.

Segundo ele, em seu livro “Haxixe e Loucura”, “para entender os delírios de um louco, é preciso delirar, mas sem perder a consciência da loucura”. Para isso, ele tomava a droga enquanto era observado por seus parceiros de estudos. Depois, um de seus parceiros tomava a droga enquanto ele observava. 

Mas uma coisa bastante interessante é a forma como ele preparava a substância. Moreau fazia sua própria extração a partir da descarboxilação das flores de cannabis na manteiga, e a transformava no que os árabes chamavam de Dawamesk. Ele combina a manteiga canábica a açúcar, frutas e especiarias para facilitar o consumo.

E não é só isso: a dose utilizada pelo médico em seus estudos continha aproximadamente 150 miligramas de tetrahidrocanabinol. Ou seja, é uma porrada de THC, se pensarmos no fato de que um baseado contém uma média de cinco miligramas da substância.

Com metade ou um quarto dessa dose, Moreau observava que o usuário podia experimentar euforia e ter crises de riso incontroláveis. Mas só a dose completa poderia levar alguém ao al-kief, um estado descrito pelos árabes como o ápice da experiência com o haxixe. 

O que Moreau descobriu sobre o haxixe?

Uma coisa é inegável: Moreau conseguiu, com todas as suas investigações, resumir em oito pontos a experiência de inebriação provocada pelo haxixe e por quantidades quase heróicas de THC. Até hoje, ela é uma das mais explicativas já elaboradas!

Seus efeitos, então, são:

  • Sentimento de felicidade plena;
  • Euforia e dissociação de ideias, com um aumento da criatividade e imaginação;
  • Perda de noção de tempo e espaço;
  • Desenvolvimento do sentido da audição e até mesmo sinestesia;
  • Ideias fixas, ilusões e delírios;
  • Emoções exaltadas e perturbadas;
  • Alta na impulsividade;
  • Alucinações.

O médico publicou suas experiências em 1845, vendeu poucos livros e acabou nem entrando na Academia de Medicina. Mas sua influência acabou se transformando em um movimento não apenas científico, mas também cultural.

Fotografia antiga de uma confraternização no Club des Hachichins, que reunia a elite literária de Paris em encontros que investigavam os efeitos da substância
O Club des Hachichins reunia a elite literária de Paris em encontros que investigavam os efeitos da substância Fonte: Medium.com

A formação do Clube do Haxixe

Théophile Gautier, um dos mais proeminentes autores do romantismo francês — e um grandíssimo hedonista, diga-se de passagem —  recebeu um pouco de haxixe de Moreau. Ele experimentou três diferentes “viagens” com a droga:

  • Na primeira, ele passou a ter visões de padrões psicodélicos, como caleidoscópios, e ficou eufórico.
  • Sua segunda viagem envolveu visões de borboletas e flores, além da sinestesia. De acordo com ele, as cores apresentavam sons distintos. Ele também perdeu completamente a noção de tempo.
  • Já a terceira foi bastante intensa, lotada de alucinações e explosões de criatividade.  

A partir disso, o jovem autor decidiu organizar uma espécie de sociedade secreta, onde o haxixe deveria ser consumido de uma forma quase sacramental. O Club des Hachichins, ou clube de comedores de haxixe, realizava reuniões mensais, nas quais a substância era ingerida por um seleto grupo de convidados de Gautier.

Mas quem eram esses haxixeiros das antigas?

Membros notáveis do Clube do Haxixe

Os membros originais incluíam: 

Eugène Delacroix, o mais importante pintor do romantismo francês. 

Charles Baudelaire, autor da coleção de poesias de 1857 Les Fleurs du Mal. Ele escreveu sua própria peça sobre haxixe, chamada Paraísos Artificiais, que foi publicada em 1860.

Gérard de Nerval, um dos principais autores do romantismo francês. Inclusive, ele sofreu, durante a vida toda, com episódios de psicose e outros transtornos mentais. 

Alexandre Dumas, romancista famoso no mundo inteiro por obras como Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. Dumas era um grande aventureiro, que buscava por inspirações para sua escrita.

Victor Hugo, autor de clássicos como Les Misérables e Notre-Dame de Paris. Além de ser um artista cujas obras transbordam criatividade, ele era extremamente envolvido com a política.

E qual foi o desfecho desse clube?

Por um bom período de tempo, as reuniões dessas grandes mentes foram mantidas em segredo. Até que, em 1846, Gautier publicou um artigo considerado bastante extravagante na La Revue des Deux Mondes. Embora parecesse bem fantasioso, o próprio Moreau confirmou que ele é extremamente fiel aos oito pontos levantados por ele durante as experiências com 150mg de THC.

De acordo com o livro Cannabis, a History, Gautier escreveu:

“Eu estava experimentando uma completa transposição de gostos. A água que eu bebia parecia ter o sabor do vinho mais requintado, e a carne virava framboesas na minha boca, e vice-versa. Eu não poderia distinguir uma costeleta de um pêssego. Depois de vários minutos, uma total falta de sensação se espalhou por mim! Meu corpo parecia estar dissolvido e transparente. Dentro do meu peito, vi claramente o haxixe que havia comido, como uma esmeralda emitindo milhões de pequenas faíscas. Meus cílios cresceram cada vez mais sem parar e, como um fio de ouro, enrolados em pequenas rodas de marfim girando completamente sozinhas com velocidade estonteante. Ao meu redor fluíam e rolavam pedras preciosas multicoloridas. No espaço, padrões de flores se dividiam incessantemente como num caleidoscópio. Em certos momentos, reencontrei meus companheiros, mas distorcidos; pareciam meio homens, meio plantas, com o ar pensativo de um íbis, de pé sobre um pé de avestruz, batendo as asas. Tão estranho foi isso que tive uma convulsão de riso. Comecei a jogar meus travesseiros no ar, pegando-os, jogando-os em círculos com a vivacidade de um malabarista indiano.”

Depois disso, não se sabe exatamente por quanto tempo eles continuaram a se encontrar e a partilhar do haxixe.

E aí, gostou de conhecer essa história? O Club des Hachichins contou com nomes muito importantes para a sociedade, e acreditamos que, sem ele, perderíamos a riqueza de tantas obras. É sempre incrível descobrir o quanto as drogas também contribuíram para o mundo, especialmente antes das proibições que condenaram (e ainda condenam) o seu consumo.

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Até a próxima!

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Carol Brazada
Carol Brazada
1 ano atrás

Que história incrível! 😍 super interessante saber das figuras históricas do clube também!

Isabel
Isabel
1 ano atrás

Caramba, gostaria muito de ter uma brisa dessa que o Gautier teve! Uau