Com a rejeição das propostas de legalização da maconha, cenário na Espanha segue incerto – e muitos clubes e associações já tiveram que fechar as portas. Entenda a situação!
Olhando de fora (e sem se informar muito sobre a situação), a Espanha pode parecer um paraíso canábico. Com clubes e associações onde o consumo da planta é “liberado” e eventos gigantes, como a famosa feira Spannabis, o país se tornou um dos mais procurados por turistas que querem conhecer um lugar incrível – e ainda poder aproveitar a plantinha.
O problema é que, desde o ano passado, o cenário ficou estremecido após decisões da Suprema Corte que complicaram o funcionamento das instituições e levaram ao fechamento de diversas delas. Além disso, em outubro, o parlamento espanhol rejeitou um projeto voltado à legalização da maconha, o que gera mais entraves para os espaços. Desde sempre, a nebulosidade do assunto traz mais confusão do que respostas. Afinal, o que pode e o que não pode ser feito por lá?
Para ajudar a responder estas questões, conversamos com a Presidenta da Federação de Associações Canábicas da Catalunya (CatFAC), Patty Amiguet, e com a jornalista Maria Fernanda Romero. Ambas acompanharam de perto os últimos acontecimentos no país e nos trouxeram informações sobre o que está rolando em terras espanholas.

Vem com a gente saber mais!
Como funcionam as associações canábicas na Espanha?
A história das associações e clubes canábicos na Espanha começa a partir de um plot twist bem maluco. A Ley Corcuera, de 1992, pretendia restringir o uso de drogas, mas suas lacunas eram tantas que acabaram permitindo o surgimento de espaços privados, sem fins lucrativos explícitos, para o consumo de maconha! Loucura, né?
A partir de então, membros de associações e clubes podem consumir a plantinha de forma compartilhada a partir de uma taxa mensal, que geralmente fica em torno de dez euros. Estima-se que existam cerca de 700 estabelecimentos da espécie espalhados pelo país.

Todos esses espaços respondem a regras e boas práticas de funcionamento, mas existem um porém: em 2021, a Suprema Corte do país decidiu que apenas o Estado (e não cidades e províncias) teria o poder de regulamentar o que acontece em associações e clubes. Essa decisão colocou em risco as instituições, e muitas delas se viram obrigadas a fechar as portas devido à decisão.
Entendendo melhor a situação espanhola
Se você também está se sentindo confusa ou confuso, vamos explicar melhor. Patty conta que, na Espanha, existem três níveis políticos: o nível local, o nível comunitário e o nível federal. Portanto, são três níveis diferentes de regulamentação. Segundo a ativista, no nível local e nas comunidades, houveram muitas iniciativas que tentaram dar um tipo de quadro regulatório às associações de cannabis, mas a legislação depende do nível federal – que bloqueia e derruba decisões.
“Dizem que é competência do Estado, mas o Estado não faz nada”, expõe Amiguet.
A última decisão de 2021 causou alvoroço por tirar a falsa sensação de autonomia que as cidades e estados foram adquirindo após anos de vista grossa por parte das autoridades federais. As empresas de cannabis foram informadas de que a venda, o consumo ou a promoção de cannabis serão proibidos na Espanha, incluindo Barcelona, cidade onde a cultura canábica é ainda mais efervescente e na qual estão localizados 70% dos clubes do país.
Maria Fernanda, que tem experiência no segmento, afirma que o clima após a decisão foi estressante. Muitos donos de clubes e associações ficaram sem saber o que fazer, aguardando a fiscalização policial ou até mesmo o fechamento do seu espaço. Atualmente, ela acredita que as coisas tenham adquirido uma espécie de véu do “novo normal”: as instituições que seguem abertas fazem isso com mais discrição e cautela, sem publicidade, propagandas e muito menos grandes eventos.
Mas, mesmo com medo, muitos seguem funcionando neste vácuo legal até segunda ordem.

E existe previsão para a legalização na Espanha?
Existem tentativas de regulamentação e legalização, mas não há consenso no parlamento espanhol. Amiguet pontua que, em 2021, foram apresentados os textos iniciais de três propostas regulatórias – mas, em sua visão, o que acontece é que o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), que é o principal do governo atual, não está com vontade de regular o uso adulto da maconha. “Os políticos meio que falam que primeiro tem que vir o uso medicinal, e depois podemos começar a falar do uso recreativo”.
Para a ativista, mesmo que esse debate pareça ativo, ele não passa de um blefe sem intenções reais de mudança. Além disso, o país está ficando sem tempo. Com o crescimento do partido de extrema-direita Vox e a proximidade das próximas eleições espanholas, talvez 2022 seja o último ano para alavancar a regulamentação não apenas da planta, mas também das associações.
“A sociedade avança muito mais rápido que a legislação. Neste momento, o cenário canábico em todos os níveis (tanto comercial como ativista) está vivendo muita repressão e criminalização. E é realmente estranho que de um lado estejamos tendo uma espécie de debate, mas a verdade é que estamos sendo muito punidos, e isso está se tornando um problema real”, desabafa Patty.

Em outubro de 2021, o parlamento espanhol vetou uma proposta de legalização da cannabis. O texto rejeitado previa impostos especiais sobre a erva para destinação a ações de saúde pública e incluía o uso adulto, apresentando restrições bastante semelhantes às que usuários de tabaco já enfrentam quanto ao consumo em público.
Marginalização e falta de diálogo
Um dos maiores problemas na Espanha, assim como na maioria dos outros países do mundo, é que o diálogo sobre a regulamentação e legalização falha ao manter-se apenas na bolha política, sem incluir ativistas, donos de associações e os próprios usuários.
O uso de cannabis é mais do que normalizado no país: segundo a pesquisa EDADES 19/20 do Plano Nacional sobre Drogas (PNSD), ela é a substância mais consumida por pessoas entre os 15 e 64 anos de idade. De acordo com a Canna Byte, existem quatro milhões de consumidores locais, bem como cerca de 6,5 a 12,5 milhões de turistas que visitam a Espanha todos os anos para aproveitar a abertura dos clubes e associações.

Então, quais os motivos para manter a ilegalidade?
Segundo o deputado socialista Daniel Vicente Viondi, o problema estaria nos vícios. Patty rebate que esse é justamente um argumento à favor da legalização: com leis bem definidas, segundo ela, é possível acessar usuários e usuárias com maior facilidade, garantindo não apenas a qualidade do que consomem – mas também as ações voltadas à educação e à Redução de Danos, minimizando os riscos do desenvolvimento de uma relação problemática com a substância.
Para a ativista, o modelo dos clubes e associações funciona e é reconhecido em todo o mundo, mas, na Espanha, parece haver uma vontade de romper com ele e começar algo que não se sabe como vai funcionar. “Acho que o que acontece é que os políticos têm que ouvir mais os movimentos. Já estamos trabalhando há mais de 30 anos e sabemos fazer isso, só precisamos das ferramentas”, esclarece. Ela acrescenta que outro ponto chave é o foco na saúde, e não na economia. Se a preocupação são as pessoas, por que a maioria dos argumentos é voltado ao faturamento?
Romero ressalta que a marginalização não afeta apenas os usuários e usuárias da planta, mas também trabalhadores e trabalhadoras dos clubes e associações. De acordo com ela, a falta de legislação faz com que não haja nenhum tipo de segurança, contrato ou direito trabalhista que respalde o grupo.
Esperanças para um futuro próximo
Sem controle legal, tanto pacientes medicinais e/ou terapêuticos quanto usuários adultos ficam à mercê da honestidade dos clubes. Por isso as associações sérias são tão importantes – e, de acordo com Amiguet, uma das maiores pressões da sociedade civil no momento é justamente o reconhecimento das mesmas. São elas que oferecem apoio e produtos seguros para quem precisa – ou deseja – fazer uso da substância.
Dentro de todas as propostas já apresentadas, é reconhecido e validado o acesso à cannabis através de associações, cada qual com suas especificidades, que ainda devem ser decididas conforme avançam os debates. Entretanto, as maiores esperanças são muito parecidas com as que temos por aqui:
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Apoio nas ações de RD;
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Garantia de acesso a produtos de qualidade;
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Regulamentação baseada na saúde pública;
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Respaldo legal para o fim do punitivismo contra usuários e usuárias.
- Haxixe Ice

“Se eles [políticos] quiserem fazer isso da maneira correta, podemos fazer as coisas da maneira correta, mas precisamos de um quadro legal para que possamos realmente dar o acesso e as informações para as pessoas usarem cannabis de uma forma menos arriscada. E obviamente isso vai ajudar”, finaliza Patty.
E aí, conseguiu entender um pouco melhor o que se passa por lá pela Espanha? Por aqui, seguimos mandando muita força para todas as ativistas e todos os ativistas que têm pressionado o governo por uma mudança. Afinal, infelizmente, as brechas não são o suficiente para garantir uma política de drogas justa e eficaz.
Já esteve por lá? Conheceu algum clube ou associação? Conta aqui pra gente nos comentários a sua experiência, e não esqueça de nos seguir no Instagram @girlsingreen710 para mais informações fresquinhas sobre o universo canábico.
Até mais!
Caramba! Que confusão nessa Barcelona, hein! Adorei o artigo, super informativo e claro! Obrigada, meninasss! Girls in green always hehe espero que logo menos a gente possa ter mais participação no cenário governamental em relação a legalização da cannabis… essa insegurança só sucateia o aparato do Estado e reduz os direitos legais do pessoal que trabalha no ramo… relação perde-perde!