Redução de Danos

A cannabis como porta de saída de outras drogas

É preciso quebrar o mito de que a cannabis é a porta de entrada para outras drogas mais fortes quando, na verdade, ela tem sido uma grande ferramenta como PORTA DE SAÍDA para outras substâncias, como álcool, crack e opióides.

Quando falamos de usuário para não-usuário de cannabis, uma das frases mais ouvidas é que “a maconha é a porta de entrada para outras substâncias” possivelmente mais danosas para o organismo, e esse seria um dos principais argumentos contra a regulamentação. Na verdade, isso nada mais é do que uma anedota proibicionista – o tipo de coisa que se diz para manter a população com medo, sem muitas explicações, e de tão repetida, é tomada como verdade. E aqui estamos nós, como sempre, para contar para você que não é bem assim.

Muitos pesquisadores já quebraram esse mito – como é o caso das psicanalistas Luciana Saddi e Maria de Lurdes de Souza Zemel, que lançaram o livro Maconha: Os Diversos Aspectos, da História ao Uso (editora Blucher). Na obra, vemos ensaios de especialistas nas mais diversas áreas, do direito à segurança pública, passando pela antropologia, história, economia e, sobretudo, psicologia. Para as autoras, não apenas fica claro que a maconha não é porta de entrada para outras drogas, mas também que essa frase serve a interesses econômicos.

Além de tudo isso, desde a proibição da cannabis no mundo até hoje, já existem diversos estudos que comprovam que a cannabis pode ser uma grande aliada numa aproximação com a Redução de Danos – principalmente quando falamos em dependência de substâncias cujos usos constantes apresentam riscos sérios. Ela já foi usada em pesquisas ao redor do mundo para ajudar usuários de drogas intravenosas, como opioides (heroína e outros), cocaína e etc.

Quer entender melhor essa lógica? A gente te conta aqui!

Baseados sendo entregues  como estratégia de redução de danos
Maconha como estratégia de redução de danos

Crack versus cannabis

Assim como as drogas intravenosas se tornaram uma enorme questão de saúde pública em meados dos anos 80 (muito pela transmissão de HIV & AIDS), o crack seguiu o mesmo processo a partir dos anos 90. A droga pode ser extremamente danosa para o organismo, principalmente se consumida em excesso, já que inibe a recaptura de neurotransmissores pelos receptores pré-sinápticos, e pode causar uma série de manifestações neurológicas como o acidente vascular cerebral, aumenta a frequência cardíaca e a pressão arterial, podendo culminar em isquemias e infartos agudos do coração.

Além disso, como a gente sabe, a violência que a guerra às drogas traz para usuários em situações vulneráveis, acaba fazendo a maior parte das vítimas fatais. De acordo com uma pesquisa da Unifesp em relação às causas de morte dos usuários da dessa substância, cerca de 57% dos usuários são assassinados. 

A cannabis entrou neste contexto para como uma agente de redução de danos. A temática da terapia de substituição de substâncias não é nova, sempre ouvíamos dizer sobre a famosa metadona para usuários de heroína. Nesse caso, essa planta especial entra no jogo para ajudar no processo de diminuição ou mesmo de abstinência no crack. Aliviando sensações de fissura, minimizando sintomas da abstinência, e assim ajudando a reduzir vulnerabilidades.

Um dos primeiros brasileiros a conduzir estudos desse tipo foi o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, diretor do Programa de Orientação e Tratamento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em meados da década de 90. A experiência consistiu em oferecer maconha a um grupo de 50 usuários de crack. Conforme os dados, 68% haviam trocado de droga depois de seis meses. Após um ano, quem fez a substituição deixou também a cannabis.

Os 20 pacientes escolhidos para o estudo afirmavam que a maconha diminuía a fissura do crack, abria o apetite e permitia que dormissem melhor. Os usuários, indivíduos entre 16 e 28 anos, foram submetidos a um teste, no qual fumavam em média três cigarros de maconha por dia.

Segundo os psiquiatras, depois de três meses de acompanhamento, 14 deles tinham diminuído significativamente o uso do crack. Ao final de um ano, os 14 relataram não estar mais fumando crack e o uso da maconha teria sido reduzido a um ou dois cigarros por semana.

Xavier é bastante categórico quando diz que o uso controlado da cannabis pode ser uma solução para esse e outros problemas, em uma esfera de Redução de Danos. Ele alerta que a substância também não vem sem riscos – mas que são muito menores em relação a outras. A grande parte da resistência da comunidade parte de estereótipos.

Embora o grupo tenha sido pequeno, o sucesso desse experimento abriu portas para ainda mais estudos – no Brasil e no mundo.

Placa com o texto: Zona anti estigmas
Zona anti estigmas

As pesquisas na atualidade

Esses dias vimos uma LIVE maravilhosa da professora Andréia Galassi junto com as Mulheres Cannabicas. Assim, ficamos inteiradas na pesquisa que está rolando. Ainda no ano passado, em 2019, a professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Andreia Galassi conseguiu um avanço inédito: a autorização da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar o canabidiol, substância derivada da maconha, para fins de pesquisa. Embora já tenha avançado no país, o uso da substância é extremamente burocrático, e essa conquista demorou três longos anos.

Os resultados deste estudo podem revolucionar o tratamento de dependentes de crack e outras drogas. Isso porque ele será pioneiro em testar os efeitos do CBD – o canabidiol – na recuperação desse tipo de vício!

A pesquisa vai selecionar 80 pessoas, com idades entre 18 e 65 anos, que sejam usuários de crack há pelo menos um ano. Os voluntários serão tratados por onze semanas, dentro da rotina deles – sem a necessidade de internação. A ideia é que se possa se haverá redução da ansiedade, fissura, síndrome de abstinência e até a diminuição da procura pela droga.

Os selecionados serão divididos em dois grupos: um deles vai receber o tratamento convencional, já ofertado pelo SUS, enquanto o outro será tratado com o CBD – sem que os pacientes saibam qual medicamento estão tomando. Se for comprovado que o tratamento a base de canabidiol tem mais eficácia, o estudo vai ser ampliado com novos voluntários.

Enquanto aguardamos ansiosamente pelos resultados dessa pesquisa, já temos outras vitórias para comemorar!

Um jeito de deixar os opioides

Os Estados Unidos vive uma questão intensa com o uso abusivo de opioides. A alta prescrição desses medicamentos para dor no país faz com que muitas pessoas encontrem uma dificuldade em lidar com o uso dessas substâncias. Na maior parte dos casos,  usuários podem entrar em situações de dependência rapidamente mesmo após um uso aparentemente “inofensivo”, como no tratamento em casos de fraturas ou outras condições similares.

Quase meio milhão de americanos morreram de overdose na última década, e dados preliminares sugerem que outras 69.000 pessoas morreram em 2019. A epidemia de opioides foi declarada uma emergência nacional no país em 2017, mas o governo não dá o amparo necessário para que as organizações possam tomar atitudes abrangentes. De acordo com especialistas, para reverter a situação, seria necessário investir cerca de US $ 50 bilhões por ano. A Casa Branca destinou apenas US $ 7,4 bilhões em 2018.

Um crescente grupo de usuários de opióides em todo o país encontra alívio na maconha medicinal. O dispensário de Manhattan, está realizando um estudo piloto de clientes que também usam opióides. Esses dados preliminares, descobrindo que a maconha ajudou a maioria dos usuários de opioides, foram encorajadores o suficiente para estimular um projeto muito maior – o primeiro estudo federal financiado com maconha medicinal para combater os altos números das classificadas dependência de heroína e analgésicos.

O estudo de US $ 238.000 financiado pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas (NIDA) seguirá mais de 10.000 pacientes com maconha medicinal em Nova York nos próximos dois anos para ver se o uso de opioides diminui.

A cannabis é legal e regulamentada em diferentes estados americanos, e essas pesquisas têm se mostrado efetivas em diversas partes do país. Em 2016, já existiam estudos colocando a cannabis como um tratamento para dores crônicas mais seguro e tão eficaz quanto os opioides, com uma chance muito menor de dependência – isto é, da perda de capacidade de gerenciamento da substância por parte do usuário.

Experiência GG: High Hopes, no Canadá

Como muitos podem já saber, a Alice (nossa grower e uma de nossas experts canábicas) é formada em psicologia, e a Redução de Danos sempre foi muito presente em seus estudos e experiências de vida. Estagiando e trabalhando em Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) aqui no Brasil, ela pode observar de perto pacientes usuários de crack e outras substâncias, e como os desdobramentos das políticas de drogas afetam esses usuários. E ela relata, o quanto alguns usuários do sistema do CAPS  relatavam o quanto a cannabis reduzia as sensações de fissura, e aquela ansiedade presente na abstinência.

Em 2017, a GG conheceu o trabalho da Overdose Prevention Center, que tinha em um braço um projeto chamado  High Hopes, que buscava oferecer produtos canábicos acessíveis, ou até mesmo de graça, para canadenses, como uma alternativa aos opiáceos. A presidente Sarah Blyth, também fundadora da Sociedade de Prevenção de Overdoses de Vancouver, contou que o objetivo é conscientizar os usuários e fornecer acesso a outras opções para o tratamento da dor, além das drogas de rua – muitas com fentanil, altamente prejudicial e fatal em diversos casos.

Essa ação de Redução de Danos, embora tenha sido autorizada previamente, foi fechada pela ação policial. E isso não é incomum – mesmo para um país onde a substância hoje é regulamentada.

A história da RD é permeada por desinformação, que qualifica a prática como uma apologia ao uso de drogas. Para nós, ela é uma apologia ao cuidado: partindo do ponto de que o uso de substâncias psicoativas sempre existiu desde o início das civilizações, nosso objetivo é garantir que os usuários tenham todas as informações disponíveis, para um uso consciente dos riscos, respeitando suas vontades e sua capacidade de tomar as próprias decisões.

O debate tá na mesa

O estigma negativo da cannabis é o maior motivo pelo qual ela é colocada como porta de entrada para outras drogas, e não o álcool, por exemplo. Para entender o motivo disso, precisamos entender por que as drogas são proibidas, e o que torna uma substância uma droga.

Como podemos dizer que a cannabis é uma droga quando os opiáceos, como vimos acima, são responsáveis por tantas mortes e ainda abertamente prescritos e vendidos em farmácias ao redor do mundo todo? Existe uma comparação?

A verdade é que a palavra droga carrega uma bagagem pesada criada pelo proibicionismo. Drogas são simplesmente substâncias químicas, cujo abuso – esse sim – pode ser considerado perigoso. A nossa relação com cada substância é o que traz maior ou menor carga de risco, por assim dizer.

Nossa luta pela regulamentação e pela Redução de Danos é uma maneira de proteger cada indivíduo, que merece receber uma medicação com controle de qualidade e com todas as informações necessárias para fazer bom uso. Dizem que a diferença entre remédio e veneno é a dose, e nós acreditamos nisso. Mesmo as substâncias mais inofensivas podem ter efeitos negativos, e o trabalho de elucidar essas questões é fundamental.

Lutar pela legalização é lutar por mais pesquisas como essas, que podem ajudar a salvar vidas de muitas pessoas em situação de vulnerabilidade. Vamos juntos nessa? Pelo caminho, quebramos também os preconceitos. Afinal – o conhecimento é nossa maior arma.

Até a próxima!

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