Uma das mulheres mais ativas na mobilização pela regulamentação da cannabis medicinal e terapêutica, Margarete nos contou, em live, como sua luta se transformou de uma esfera individual, buscando um tratamento adequado para sua filha, para uma luta coletiva junto da associação Apepi.
Quando Sofia tinha apenas 45 dias, suas convulsões começaram – e, com elas, a saga de Margarete e sua família. Segundo ela, foram pelo menos três no meses de um processo de aceitação doloroso, de que sua filha podia ter um problema grave de saúde. A partir de então, ela tomou como missão encontrar algo que pudesse ajudar a menina a ter uma vida melhor, com mais qualidade e menos crises de epilepsia. Nesse contexto, ela foi apresentada à cannabis medicinal, e sua vida tomou um novo sentido.
Hoje, a ex-advogada é coordenadora executiva da Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal – a Apepi. Desde 2013, ela ajuda a unir pacientes, seus familiares e pessoas que acreditam no poder da cannabis terapêutica, em um ambiente de troca de conhecimentos, aprendizado, conversa e, principalmente, luta pelo direito a um tratamento acessível e livre de burocracias.
A gente admira muito todas as conquistas dessa mulher incrível, super engajada e movida por uma causa tão importante. Nessa semana, a Apepi recebeu a autorização para cultivar a cannabis que dá origem ao óleo de tantos pacientes – um passo essencial para democratizar ainda mais a distribuição do medicamento, que, importado, pode custar mais de três mil reais. E nós tivemos a oportunidade de bater um papo com ela, para entender um pouco mais dessa jornada incrível!
Aqui, a gente conta como foi essa conversa.

Tudo tem um começo
Foram necessários alguns médicos e tratamentos até que Margarete fizesse a descoberta da cannabis como uma opção de tratamento em 2014, que funcionou parcialmente e trouxe uma considerável melhora para Sofia. Mas uma maravilha aconteceu com sua amiga Katiely, também mãe de uma menina com condição similar. Depois de usar o óleo, a criança passou de 80 crises epiléticas por semana para nenhuma.
“Tinha um jornalista da Superinteressante que ficou sabendo da minha história, me ligou, e eu falei ‘minha história é essa, mas essa é a história da Katiely. E aí foi incrível, porque depois que saiu no Fantástico, muita gente começou a nos procurar.”
Também em 2014, com essa descoberta, surgiu a Apepi – que começou pequena, com alguns pais e mães de crianças que sofriam com episódios de epilepsia. Com a exposição gerada pela matéria na televisão, vários passos foram dados: primeiro, que o Conselho Nacional de Medicina reconhecesse a maconha como prescrição medicinal; depois, a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para que ela pudesse ser importada.
Mas isso não foi tudo. Nem todos os pais que procuravam a Apepi tinham a condição de importar o canabidiol – substância canábica usada para diminuir e prevenir as convulsões. E foi aí que entrou o autocultivo. Em 2016, Margarete conta que a associação finalmente foi formalizada, e, além do apoio aos familiares, ela, seu marido Marcos e outros membros passaram a desenvolver aulas de cultivo e a distribuir plantas e sementes.

A desobediência civil pacífica
“A prática da desobediência civil, isso foi maravilhoso. Isso surgiu na Apepi, numa reunião, e virou uma narrativa nossa. Seguimos a escola de Gandhi e Luther King: quem comete essa desobediência acredita estar cumprindo o seu dever de cidadão, numa situação ou circunstância em que a lei merece mais ser desobedecida do que obedecida. A partir do momento que ela é pública, num lugar onde é proibido, você justifica e isso ganha um significado importante. Na aula de cultivo da associação fazemos doações de plantas e sementes.
Mesmo em contato com a cannabis desde 2014, apenas em 2016 Margarete ganhou a primeira planta. Na época, ela conta que ela e o marido passaram a aprender mais, fazer clones, descobrir o que a planta precisava, com a ajuda de amigos da militância canábica do Rio de Janeiro.
Para ela, é muito importante não apenas reconhecer os privilégios, mas usar esse lugar de privilégio para demandar mudanças em normas injustas como a política proibicionista, que traz tantas consequências negativas para a sociedade.
“Nunca quis esconder isso, porque acho um absurdo. Reconheço meus privilégios, mas tem muita gente com as mesmas condições que a minha que não se revela, e eu acho que isso é ser antipolítico. A gente não precisa que todo mundo seja ativista, mas eu fico muito bolada com as pessoas que plantam escondendo.”
Até essa semana, ela usava o seu Habeas Corpus pessoal (o primeiro concedido no Brasil para esses casos) para cultivar a cannabis para todos que precisassem na associação. Além de seu marido Marcos, ela conta com uma ajuda super especial: do Meduza, o grower que ajudou na organização do espaço e na construção de armários para o cultivo. No meio de tudo isso, foi necessário criar a consciência de que a Apepi era mais do que uma forma de ajudar as pessoas – era também um trabalho.
A partir daí, a Apepi foi crescendo, e foi conseguindo mais associados. Hoje, a associação já conseguiu autorização para cultivo. Mas, para ela, as pessoas que se associam tem que ter a consciência de que estão ali não apenas para comprar o medicamento, mas pra aprender e contribuir também. É uma forma de cultivo associativo: cada associado deve ser um agente transformador de uma realidade injusta.
Lutadoras também choram
“A gente chora pra caramba. Mas, na Apepi, a gente tem uma rede de mulheres maravilhosas. A gente vê que cada mãe e cada pai tem o seu tempo de aceitação. Digo dos pais que ficam, pois existe um número de abandono muito grande, tem mulheres que seguem sozinhas porque o marido não aguenta. Todo mundo que tem um filho com deficiência tem o seu tempo de luto, porque você espera um filho típico e vem um outro com questões que você nunca imaginou, mas é preciso aceitar para seguir a vida, transformar o luto em luta.”
Para Margarete, é preciso desconstruir a imagem das mães de filhos especiais como guerreiras fortes, que não se abalam por nada. Na associação, existe um trabalho grande de acolhimento de famílias, para que todos se sintam apoiados. Mas todos passam por um processo doloroso, que vem, muitas vezes, antes da luta – um processo humano, que precisa ser lidado com delicadeza e sensibilidade.
Além de aceitar que os filhos precisam de ajuda, é necessário aceitar a cannabis como a ajuda. Em um contexto proibicionista, infelizmente nem todos os pais e familiares estão livres do preconceito contra a substância. “Ao contrário de outras mães, eu pensei ‘poxa, que legal, tomara que a maconha possa fazer alguma coisa para que eu tire os remédios mais fortes da Sofia.’ Eu acho que essa forma de eu lidar com a cannabis, sempre de uma forma tão tranquila, fez com que eu conseguisse ajudar as pessoas que não aceitam tão bem.”
Por uma militância mais feminina (e feminista)
Outro ponto de aceitação foi o da cena canábica com a sua participação. Margarete conta que, em 2014, quando ela começou a se inserir nesse contexto, foi recebida de braços abertos – mas em um ambiente exclusivamente dominado por homens. “Certamente era um ambiente muito machista e muito fechado, é muito doido, porque assim, era um clubão, só tinha homem. Diversas vezes eu resgato as fotos e só tem eu de mulher, e era isso assim. Eu conheci esses meninos e, embora eles tenham sido uma referência incrível pra mim, depois de um tempo eu não consegui conviver, eu não consegui construir meu ativismo”.
A associação acabou virando um espaço completamente novo e diferente, onde as mães conseguiram o espaço e criaram um protagonismo muito mais feminino dentro da luta. “Acabou que eu foquei muito mais na Apepi, com muitas mães, muitas mulheres. No início era só mãe de criança com epilepsia, e hoje temos pessoas de todas as idades, pais e outros familiares também.”
A regulamentação ideal
Margarete conta que, desde que tomou a Apepi e o ativismo como trabalho, já ajudou centenas de mulheres e famílias. Foi para Brasília, fez política, levou sua causa a marchas da maconha, e auxiliou a disseminar pelo país uma ideia de uma regulamentação mais justa, que permita que os usuários de cannabis medicinal possam fazer isso sem o medo de acabar em uma prisão. Para ela, não é necessário só isso: o uso recreativo também precisa ser descriminalizado.
Existem dois tipos de regulamentação que ela toma como modelo: a do Uruguai e a da Colômbia. No Uruguai, todos os cidadãos podem comprar uma cota de cannabis em farmácias e dispensários, seja qual for a finalidade do uso. Já na Colômbia a regulamentação é mais voltada ao uso medicinal: inclusive, nos últimos anos, o país ganhou atenção internacional pelas suas políticas de fomento ao mercado de cannabis medicinal, que procura, principalmente, diminuir seus problemas com narcotráfico.
Conversar com a Margarete Brito foi uma experiência incrível: para nós, ela é um símbolo da luta feminina no meio canábico; e, além de tudo, de altruísmo. Nós adoramos conhecer melhor a história dessa mulher maravilhosa, que largou sua profissão para criar uma rede de apoio que já é referência nacional – e já conquistou muitos avanços em poucos anos. Quer continuar acompanhando essa trajetória?